Ano passado participei pela segunda vez do concurso nacional de contos Santander, Petros, e fui classificado em sexto lugar. No ano anterior havia ficado em oitavo. Uma grande conquista, pois centenas de contos foram enviadas.
O que me motivou a escrever este artigo, entretanto, não foi, no primeiro momento, o fato acima, mas o maravilhoso filme a que assisti ontem, em 3D: A INVENÇÃO DE HUGO CABRET. Recomendo a todos, é imperdível, o 3D é fantástico para esse filme, pois se passa em Paris no início do século XX e mostra imagens belíssimas das estações de trem, dos relógios de torre, os bares, etc...
O filme me agradou principalmente pelo que mais acho interessante de fazer em meus contos: contar uma história verdadeira....de mentira...misturar fatos reais com fictícios, como tão bem fazia Jorge Luis Borges, ou, entre nós, Murilo Rubião. George Méliès, um dos personagens centrais de Hugo, realmente existiu e vale a pena pesquisá-lo na internet. O filme é retirado de um livro infanto-juvenil de mesmo nome, não sei se tem em português. Ah, ia me esquecendo, o título Canal Brasil, sete de março, vinte e duas horas: a erva do rato, o que tem a ver com isso? Fiquei pasmo por uma coincidência quando no final do ano passado vi o anúncio desse filme em pré-estreia no canal Brasil. Em seguida ele seria exibido nos cinemas. Fiquei atento ao dia e ao horário porque o filme é sobre um conto de Machado de Assis: Um esqueleto. O filme não tem o nome do conto porque o mistura a um outro do próprio Machado e além disso insere idéias próprias do diretor Júlio Bressane na história/estória. É nesse ponto que o filme se parece( e somente nesse ponto) com o de Martin Scorsese, a Invenção de Hugo Cabret). Adoro esse coisa de viajar da história real para a fictícia e depois voltar para a história real, como acontece nos sonhos. Pois bem, pela dita incrível coincidência, o filme A Erva do Rato, partia do mesmo conto e do mesmo tema que eu havia enviado ao concurso de contos. Eu havia escrito o conto em abril e o filme foi lançado em outubro ou novembro, se não me engano. Júlio Bressane roubou minha ideia. Na verdade, além dos avaliadores, ninguém havia lido meu conto, até então, já que o resultado do concurso saiu na mesma data do filme, e só então os contos foram publicados em uma antologia. Aconselho a todos que amam Machado de Assis, como eu, a assistirem ao filme, data e horário descritos no título. Se não gostarem do filme, pelo menos irão se maravilhar com as belas formas e a nudez exuberante de Alessandra Negrini. Para terminar, meu conto premiado, UM ESQUELETO: PARTE DOIS, como aperitivo para o filme de Bressane(ah, não se esqueçam...os fatos que descrevam são reais e ao mesmo tempo fictícios...pesquisem)
UM ESQUELETO, PARTE DOIS
Ramon Luiz Moreira
— Veste-me como quiseres, dizia ele à mulher; o que não poderás fazer nunca é mudar-me a alma. Isso nunca (“Um esqueleto”, Machado de Assis).
Meu nome é Alberto. Não revelarei meu sobrenome por questão de segurança, mas garanto, o que vou contar é pura verdade. Com sessenta anos, minha memória padece e não consigo lembrar-me da data exata dos fatos, mas acho que foi entre 1845 e 1855. A praia era a de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro. Estávamos ali, os dez ou doze rapazes, a beber, jogar baralho, fumar e recitar, como fazíamos todas as sextas-feiras à noite. Foi quando, já bêbado, contei o caso do esqueleto. Fiz questão de dizer que não era verídico; a intenção era impressioná-los. Não imaginei que um dos amigos, o Castro Alves, diria tudo ao Machado, e este não desperdiçou a chance de publicar a minha história. Até meu nome colocou.
Tudo ficou assim, por muitos anos. Resolvi contar a verdade, pois a mentira é um fardo pesado de carregar.
Lembram-se de que o suposto Dr. Belém ensinava-me alemão? Essa foi a primeira mentira. Era francês, o que eu aprendia com ele. Aliás, minto, a primeira mentira não foi essa. O seu nome não era Belém, mas Peixoto, na verdade Antônio Peixoto. Eu o conheci na Casa de Saúde, na Rua Viscondessa, em Botafogo. Sua bela clínica era no Chalet D’Olinda. O Doutor Peixoto tratou-me de uma amigdalite crônica. Chegamos a marcar a cirurgia, mas milagrosamente a febre desapareceu antes da operação e nunca mais voltou. Minhas constantes consultas fizeram-me conhecer a sua clientela francesa. Explicou-me que seus estudos na França lhe trouxeram prestígio entre os europeus. Seu hospital acabou se tornando o Hospital de La Marine Imperial Française.
Recordam-se bem, os senhores, do conto “Um esqueleto”, de Machado de Assis? Foi um dos mais famosos da época. Mas tudo se passou como se fosse ficção. Era, em parte.
Recordam-se também de que o Doutor Belém guardava em sua casa o esqueleto de sua primeira mulher, a quem matara por suposta traição com um vizinho. Não sabemos até hoje como conseguiu o tal esqueleto, mas é provável que o tenha exumado secretamente. Como sabem, Dona Marcelina, a segunda esposa de Doutor Belém, aceitara conviver com “o esqueleto” da primeira esposa. O famoso médico colocava o monte de ossos à mesa de refeições para servir de exemplo à nova esposa. Caso o traísse, também a mataria. Eu era o único cúmplice daquela história maluca. Almoçava frequentemente com “os três”. Tornei-me íntimo, e sendo o único amigo daquele homem excêntrico e de sua mulher amedrontada, sabia de tudo o que se passava em sua casa. Lembram-se, também, se leram o conto, que Doutor Belém precisou fazer uma viagem solitária de um semestre ao interior de Minas Gerais, para estudos de Botânica, aos quais era aficionado, e confiou a mim a proteção de Dona Marcelina, vinte e cinco anos mais nova do que ele. Para não despertar suspeitas, fiz ver a ele que enquanto viajasse não frequentaria a sua residência, deixando à minha irmã a incumbência de cuidar de Dona Marcelina; mas, também, como se lembram, Dr. Belém escreveu-me, três meses depois, pedindo que levasse até ele Dona Marcelina e – pasmem – o esqueleto. Dizia-se com saudades. Para agradá-lo, fomos até lá, incluindo na comitiva minha irmã. Doutor Belém agradeceu, e Dona Marcelina reparou que ele demonstrara mais saudades do esqueleto do que dela. Ficamos lá por três dias. No segundo chamou a mim e a Dona Marcelina até a beira de um riacho e nesse lugar ermo nos revelou sua desconfiança. Estava certo de que Marcelina e eu nos amávamos, e de há muito o suspeitava. Considerei uma ofensa a afirmativa, mas ele foi impávido: o traíamos. Ponderou que nos queria demais, por isso nos perdoava, entendia tudo. Ele merecia aquilo. Seguiria sua vida com seu amor verdadeiro; e assim, abraçado ao esqueleto, sumiu na mata sem que ninguém o conseguisse encontrar. Termina assim o conto de Machado.
Meus amigos, metade ficção, metade verdade.
O esqueleto não era, na verdade, da primeira esposa de Doutor Belém, em verdade Doutor Peixoto. O esqueleto era de Eugênia Merge, sua amante francesa. O marido de Eugênia descobriu que ela o traía, matou-a por defesa da honra e foi absolvido. Doutor Peixoto, inconsolável, caiu consternado. Não conseguia mais trabalhar. O marido de Eugênia voltou para Paris, o caso ficou conhecido no Rio de Janeiro. Foi então que o Doutor Peixoto resolveu roubar o corpo da amada e desta forma o carregar consigo para sempre. Mas ninguém sabia dessa parte da história, exceto eu, que não sei por que motivo, fui escolhido para seu confidente.
Aqui começo a segunda parte da história, a verdadeira, a não revelada.
Depois do sumiço do marido, Dona Marcelina voltou ao Rio e viveu reclusa. Com ela convivíamos apenas os criados, minha irmã e eu. Entristecida, viúva pela segunda vez aos 25 anos, só sabia rezar e fazer caridade. Eu a estimulava a sair, ter uma vida social. De nada adiantava. Vinha almoçar em nossa casa aos fins de semana e quase não conversava. Só usava preto.
De todas as formas tentamos achar seu marido. Enviamos fotos aos jornais, espalhamos panfletos pelas paróquias, procuramos por hospitais e asilos. Imaginamos que ele enlouquecera e se tornara um eremita. Nada; nenhuma notícia tínhamos dele.
Passaram-se dois anos. Certo dia, cansado de ver tanta tristeza no rosto de uma mulher tão jovem, convidei-a a ir ao teatro. Para minha surpresa, aceitou. Fomos à ópera, jantamos juntos. No outro dia estava feliz. Passou a freqüentar nossa casa, queria estudar francês. Ponderei que meus estudos estavam pela metade desde o desaparecimento do Peixoto, e encontramos uma professora. Aos poucos nossas vidas foram se encontrando, até que nos casamos. Éramos felizes, mas os filhos não vinham. Marcelina já estava com 28 anos. A felicidade do casamento a deixara mais bonita. Pela primeira vez era feliz.
Um dia afinal, aconteceu. Era sábado. Um dia ensolarado. Marcelina estava com enjoos, parecia, afinal, grávida. Estava na sala a bordar. A campainha tocou e, quando abri a porta, deparei-me com ele: o Doutor Peixoto. Não me dirigiu palavra. Foi entrando. Chegou até a sala, onde Dona Marcelina bordava. Fez-se um silêncio mortal. Olhou-me nos olhos, olhou nos olhos dela, andou para lá e para cá. Afinal falou:
— Sosseguem. Não me perguntem onde estava. Não vou matá-los. Não me matarei. Depois prosseguiu:
— Descobri, desde o primeiro dia, que ficariam juntos. Era melhor que eu não estivesse aqui para ver. Voltei só para confirmar.
Assim dizendo, saiu devagar, fechou a porta. Voltou a trabalhar. Era um médico famoso, um grande cirurgião. Dizem que à noite dormia com o esqueleto, e beijava-o, fotografava-o em supostas poses sensuais, e com ele conversava; e ninguém nunca mais o viu com mulher alguma, viva.
Certo dia, incomodado por tantas dúvidas, resolvi procurá-lo. Fui à sua clínica. Esperei que terminasse as consultas. Fingi que era o último cliente e adentrei a sua sala às vinte horas. Ao deparar comigo, não demonstrou surpresa, como se já estivesse a esperar-me. Perguntou somente o que me levava ali, com ares de quem já sabia a resposta. Eu disse a ele que por todos aqueles anos me sentira incomodado, com uma culpa que não me pertencia. Jamais o havia traído. Expliquei que, naquela época, os anos se passaram sem que ele aparecesse. Era dado como morto, e Marcelina vivia a sofrer. Eu era seu único amigo. Eu também vivia só, e sentíamos a falta dele. Essa falta nos aproximou. Ele também era meu único amigo. Meu amor por Marcelina talvez fosse uma expressão sublime de nossa amizade. Que outro homem ele acharia melhor para ela, já que ele mesmo não retornara? Peixoto podia ser excêntrico, mas era inteligente. Entendeu minhas explicações. Convidou-me à sua casa. Morava sozinho, digo, com o esqueleto, com o qual deparei no armário, à sala de jantar. Não estranhei. Conversamos por longo tempo. Desde que abandonou Marcelina, não procurara por mulher. O medo da traição o paralisava. Tentei convencê-lo a mudar de opinião. Não mudava.
Convidei-o à nossa casa. Disse que não iria. Trabalhava cada vez mais. Era um homem devotado aos estudos. Sem que Marcelina soubesse, passei a visitá-lo. Nas tardes de sexta-feira, jogávamos xadrez, tomávamos vinho, discutíamos literatura. Isto me lembrava o antigo grupo de amigos. Nossa amizade se renovou.
Um dia contei tudo a Marcelina. Ela chorou muito. Ainda guardava um sentimento por ele, mas era a mim que amava. Até que um dia ele voltou. Jantou conosco. Perguntou se da próxima vez poderia trazer Eugênia. Acedemos. Jantamos os quatro, naquela e em todas as sextas-feiras, à noite.
fim
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O que me motivou a escrever este artigo, entretanto, não foi, no primeiro momento, o fato acima, mas o maravilhoso filme a que assisti ontem, em 3D: A INVENÇÃO DE HUGO CABRET. Recomendo a todos, é imperdível, o 3D é fantástico para esse filme, pois se passa em Paris no início do século XX e mostra imagens belíssimas das estações de trem, dos relógios de torre, os bares, etc...
O filme me agradou principalmente pelo que mais acho interessante de fazer em meus contos: contar uma história verdadeira....de mentira...misturar fatos reais com fictícios, como tão bem fazia Jorge Luis Borges, ou, entre nós, Murilo Rubião. George Méliès, um dos personagens centrais de Hugo, realmente existiu e vale a pena pesquisá-lo na internet. O filme é retirado de um livro infanto-juvenil de mesmo nome, não sei se tem em português. Ah, ia me esquecendo, o título Canal Brasil, sete de março, vinte e duas horas: a erva do rato, o que tem a ver com isso? Fiquei pasmo por uma coincidência quando no final do ano passado vi o anúncio desse filme em pré-estreia no canal Brasil. Em seguida ele seria exibido nos cinemas. Fiquei atento ao dia e ao horário porque o filme é sobre um conto de Machado de Assis: Um esqueleto. O filme não tem o nome do conto porque o mistura a um outro do próprio Machado e além disso insere idéias próprias do diretor Júlio Bressane na história/estória. É nesse ponto que o filme se parece( e somente nesse ponto) com o de Martin Scorsese, a Invenção de Hugo Cabret). Adoro esse coisa de viajar da história real para a fictícia e depois voltar para a história real, como acontece nos sonhos. Pois bem, pela dita incrível coincidência, o filme A Erva do Rato, partia do mesmo conto e do mesmo tema que eu havia enviado ao concurso de contos. Eu havia escrito o conto em abril e o filme foi lançado em outubro ou novembro, se não me engano. Júlio Bressane roubou minha ideia. Na verdade, além dos avaliadores, ninguém havia lido meu conto, até então, já que o resultado do concurso saiu na mesma data do filme, e só então os contos foram publicados em uma antologia. Aconselho a todos que amam Machado de Assis, como eu, a assistirem ao filme, data e horário descritos no título. Se não gostarem do filme, pelo menos irão se maravilhar com as belas formas e a nudez exuberante de Alessandra Negrini. Para terminar, meu conto premiado, UM ESQUELETO: PARTE DOIS, como aperitivo para o filme de Bressane(ah, não se esqueçam...os fatos que descrevam são reais e ao mesmo tempo fictícios...pesquisem)
UM ESQUELETO, PARTE DOIS
Ramon Luiz Moreira
— Veste-me como quiseres, dizia ele à mulher; o que não poderás fazer nunca é mudar-me a alma. Isso nunca (“Um esqueleto”, Machado de Assis).
Meu nome é Alberto. Não revelarei meu sobrenome por questão de segurança, mas garanto, o que vou contar é pura verdade. Com sessenta anos, minha memória padece e não consigo lembrar-me da data exata dos fatos, mas acho que foi entre 1845 e 1855. A praia era a de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro. Estávamos ali, os dez ou doze rapazes, a beber, jogar baralho, fumar e recitar, como fazíamos todas as sextas-feiras à noite. Foi quando, já bêbado, contei o caso do esqueleto. Fiz questão de dizer que não era verídico; a intenção era impressioná-los. Não imaginei que um dos amigos, o Castro Alves, diria tudo ao Machado, e este não desperdiçou a chance de publicar a minha história. Até meu nome colocou.
Tudo ficou assim, por muitos anos. Resolvi contar a verdade, pois a mentira é um fardo pesado de carregar.
Lembram-se de que o suposto Dr. Belém ensinava-me alemão? Essa foi a primeira mentira. Era francês, o que eu aprendia com ele. Aliás, minto, a primeira mentira não foi essa. O seu nome não era Belém, mas Peixoto, na verdade Antônio Peixoto. Eu o conheci na Casa de Saúde, na Rua Viscondessa, em Botafogo. Sua bela clínica era no Chalet D’Olinda. O Doutor Peixoto tratou-me de uma amigdalite crônica. Chegamos a marcar a cirurgia, mas milagrosamente a febre desapareceu antes da operação e nunca mais voltou. Minhas constantes consultas fizeram-me conhecer a sua clientela francesa. Explicou-me que seus estudos na França lhe trouxeram prestígio entre os europeus. Seu hospital acabou se tornando o Hospital de La Marine Imperial Française.
Recordam-se bem, os senhores, do conto “Um esqueleto”, de Machado de Assis? Foi um dos mais famosos da época. Mas tudo se passou como se fosse ficção. Era, em parte.
Recordam-se também de que o Doutor Belém guardava em sua casa o esqueleto de sua primeira mulher, a quem matara por suposta traição com um vizinho. Não sabemos até hoje como conseguiu o tal esqueleto, mas é provável que o tenha exumado secretamente. Como sabem, Dona Marcelina, a segunda esposa de Doutor Belém, aceitara conviver com “o esqueleto” da primeira esposa. O famoso médico colocava o monte de ossos à mesa de refeições para servir de exemplo à nova esposa. Caso o traísse, também a mataria. Eu era o único cúmplice daquela história maluca. Almoçava frequentemente com “os três”. Tornei-me íntimo, e sendo o único amigo daquele homem excêntrico e de sua mulher amedrontada, sabia de tudo o que se passava em sua casa. Lembram-se, também, se leram o conto, que Doutor Belém precisou fazer uma viagem solitária de um semestre ao interior de Minas Gerais, para estudos de Botânica, aos quais era aficionado, e confiou a mim a proteção de Dona Marcelina, vinte e cinco anos mais nova do que ele. Para não despertar suspeitas, fiz ver a ele que enquanto viajasse não frequentaria a sua residência, deixando à minha irmã a incumbência de cuidar de Dona Marcelina; mas, também, como se lembram, Dr. Belém escreveu-me, três meses depois, pedindo que levasse até ele Dona Marcelina e – pasmem – o esqueleto. Dizia-se com saudades. Para agradá-lo, fomos até lá, incluindo na comitiva minha irmã. Doutor Belém agradeceu, e Dona Marcelina reparou que ele demonstrara mais saudades do esqueleto do que dela. Ficamos lá por três dias. No segundo chamou a mim e a Dona Marcelina até a beira de um riacho e nesse lugar ermo nos revelou sua desconfiança. Estava certo de que Marcelina e eu nos amávamos, e de há muito o suspeitava. Considerei uma ofensa a afirmativa, mas ele foi impávido: o traíamos. Ponderou que nos queria demais, por isso nos perdoava, entendia tudo. Ele merecia aquilo. Seguiria sua vida com seu amor verdadeiro; e assim, abraçado ao esqueleto, sumiu na mata sem que ninguém o conseguisse encontrar. Termina assim o conto de Machado.
Meus amigos, metade ficção, metade verdade.
O esqueleto não era, na verdade, da primeira esposa de Doutor Belém, em verdade Doutor Peixoto. O esqueleto era de Eugênia Merge, sua amante francesa. O marido de Eugênia descobriu que ela o traía, matou-a por defesa da honra e foi absolvido. Doutor Peixoto, inconsolável, caiu consternado. Não conseguia mais trabalhar. O marido de Eugênia voltou para Paris, o caso ficou conhecido no Rio de Janeiro. Foi então que o Doutor Peixoto resolveu roubar o corpo da amada e desta forma o carregar consigo para sempre. Mas ninguém sabia dessa parte da história, exceto eu, que não sei por que motivo, fui escolhido para seu confidente.
Aqui começo a segunda parte da história, a verdadeira, a não revelada.
Depois do sumiço do marido, Dona Marcelina voltou ao Rio e viveu reclusa. Com ela convivíamos apenas os criados, minha irmã e eu. Entristecida, viúva pela segunda vez aos 25 anos, só sabia rezar e fazer caridade. Eu a estimulava a sair, ter uma vida social. De nada adiantava. Vinha almoçar em nossa casa aos fins de semana e quase não conversava. Só usava preto.
De todas as formas tentamos achar seu marido. Enviamos fotos aos jornais, espalhamos panfletos pelas paróquias, procuramos por hospitais e asilos. Imaginamos que ele enlouquecera e se tornara um eremita. Nada; nenhuma notícia tínhamos dele.
Passaram-se dois anos. Certo dia, cansado de ver tanta tristeza no rosto de uma mulher tão jovem, convidei-a a ir ao teatro. Para minha surpresa, aceitou. Fomos à ópera, jantamos juntos. No outro dia estava feliz. Passou a freqüentar nossa casa, queria estudar francês. Ponderei que meus estudos estavam pela metade desde o desaparecimento do Peixoto, e encontramos uma professora. Aos poucos nossas vidas foram se encontrando, até que nos casamos. Éramos felizes, mas os filhos não vinham. Marcelina já estava com 28 anos. A felicidade do casamento a deixara mais bonita. Pela primeira vez era feliz.
Um dia afinal, aconteceu. Era sábado. Um dia ensolarado. Marcelina estava com enjoos, parecia, afinal, grávida. Estava na sala a bordar. A campainha tocou e, quando abri a porta, deparei-me com ele: o Doutor Peixoto. Não me dirigiu palavra. Foi entrando. Chegou até a sala, onde Dona Marcelina bordava. Fez-se um silêncio mortal. Olhou-me nos olhos, olhou nos olhos dela, andou para lá e para cá. Afinal falou:
— Sosseguem. Não me perguntem onde estava. Não vou matá-los. Não me matarei. Depois prosseguiu:
— Descobri, desde o primeiro dia, que ficariam juntos. Era melhor que eu não estivesse aqui para ver. Voltei só para confirmar.
Assim dizendo, saiu devagar, fechou a porta. Voltou a trabalhar. Era um médico famoso, um grande cirurgião. Dizem que à noite dormia com o esqueleto, e beijava-o, fotografava-o em supostas poses sensuais, e com ele conversava; e ninguém nunca mais o viu com mulher alguma, viva.
Certo dia, incomodado por tantas dúvidas, resolvi procurá-lo. Fui à sua clínica. Esperei que terminasse as consultas. Fingi que era o último cliente e adentrei a sua sala às vinte horas. Ao deparar comigo, não demonstrou surpresa, como se já estivesse a esperar-me. Perguntou somente o que me levava ali, com ares de quem já sabia a resposta. Eu disse a ele que por todos aqueles anos me sentira incomodado, com uma culpa que não me pertencia. Jamais o havia traído. Expliquei que, naquela época, os anos se passaram sem que ele aparecesse. Era dado como morto, e Marcelina vivia a sofrer. Eu era seu único amigo. Eu também vivia só, e sentíamos a falta dele. Essa falta nos aproximou. Ele também era meu único amigo. Meu amor por Marcelina talvez fosse uma expressão sublime de nossa amizade. Que outro homem ele acharia melhor para ela, já que ele mesmo não retornara? Peixoto podia ser excêntrico, mas era inteligente. Entendeu minhas explicações. Convidou-me à sua casa. Morava sozinho, digo, com o esqueleto, com o qual deparei no armário, à sala de jantar. Não estranhei. Conversamos por longo tempo. Desde que abandonou Marcelina, não procurara por mulher. O medo da traição o paralisava. Tentei convencê-lo a mudar de opinião. Não mudava.
Convidei-o à nossa casa. Disse que não iria. Trabalhava cada vez mais. Era um homem devotado aos estudos. Sem que Marcelina soubesse, passei a visitá-lo. Nas tardes de sexta-feira, jogávamos xadrez, tomávamos vinho, discutíamos literatura. Isto me lembrava o antigo grupo de amigos. Nossa amizade se renovou.
Um dia contei tudo a Marcelina. Ela chorou muito. Ainda guardava um sentimento por ele, mas era a mim que amava. Até que um dia ele voltou. Jantou conosco. Perguntou se da próxima vez poderia trazer Eugênia. Acedemos. Jantamos os quatro, naquela e em todas as sextas-feiras, à noite.
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