Quem não conhece a célebre acepção bíblica " No começo era o verbo"(João 1,1)?
Esta frase é uma das mais enigmáticas do livro sagrado, e como interpretá-la? Na bíblia que tenho em casa(Paulus,1990 edição Pastoral) há um comentário com a seguinte inscrição, logo abaixo do prólogo ao evangelho de São João, que começa com a frase acima( minha bíblia está escrito como " no começo a Palavra já existia".
"No começo, antes da criação, o Filho de Deus já existia em Deus, voltado para o Pai: estava em Deus, como a Expressão de Deus, eterna e invisível. O filho é a Imagem do Pai, e o Pai se vê totalmente no Filho, ambos num eterno diálogo e mútua comunicação............Jesus, Palavra de Deus, é a luz que ilumina a consciência de todo homem.......para isso a Palavra se fez homem e veio à sua própria casa, neste seu mundo........A humanidade já não está condenada a caminhar cegamente, guiando-se por pequenas luzes no meio das trevas, por pequenas manifestações de Deus, mas pelo próprio Jesus, manifestação total de Deus.
Ora, se Deus é senhor do universo e acima de todas as coisas, por que ele mesmo não tinha a palavra, e por que precisava enviar seu filho para semear a palavra? Por que ele mesmo não falava? Seria mais crível que escutássemos do céu suas palavras, diariamente, como o Big Father. Isso já é muito estranho. Se o Filho já estava no Pai desde sempre, e o filho era a Palavra, então identificamos o filho como humano e o humano como o que tem a palavra? Por que Deus apenas oferecia pequenas luzes no meio das trevas ao invés de iluminar completamente as trevas?
Além do mais, lembremo-nos do ditado italiano: traduttore, traditore. Ao que tudo indica, a melhor tradução para o a expressão bíblica não seria verbo, nem palavra....mas logos.
A bíblia resolve um problema intransponível sobre o universo dizendo que Deus existiu para sempre....mas os céticos poderiam perguntar: o que havia antes de Deus? No gênesis Deus teria criado Adão e Eva e os colocado no paraíso, céticos poderiam perguntar: o que havia antes do paraíso? O logos? O verbo?
É bem provável que os filósofos e os teólogos ficaram com a pulga atrás da orelha quando se depararam com o Fausto, de Goethe(Abril Cultural, 1976,SP, pg 64)
" Está grafado aqui:" No princípio era o Verbo!"
Esbarro! quem me ajuda no caminho acerbo?
É impossível estimar tão alto o Verbo assim?
Preciso de outra forma traduzir! Para mim,
Iluminado do Espírito e com sua assistência,
Pode entender-se assim"No início a Inteligência!"
Reflete bem agora o que essa frase expressa,
Para que o teu escrever não corra tão depressa!
A Inteligência só, tudo cria e reforça?
Devia estar escrito:"Ao princípio era a Força!"
Enquanto lanço agora esta última linha,
Algo me inspira além e para mim caminha,
O Espírito me ajuda! E diviso um clarão.
Escrevo confiante:"Ao princípio era a Ação!"
Se tudo já era confuso em João, ficou mais ainda em Goethe. No princípio era a Inteligência. A Inteligência de Deus? Será que há inteligência sem o Verbo? No princípio era a Força? A força de quê? De quem? Deus precisaria Força para criar? No princípio a Ação?
Todas essas dúvidas remeteram-me aos filósofos existencialistas. A maioria deles era ateu, e o Deus existencialista, Sartre, diria, com toda certeza: No princípio era o Nada.
Para os existencialistas, a consciência é de alguma coisa(o que eles chamam de Intencionalidade, mal traduzido aqui). Se a bíblia diz que a luz ilumina a consciência de todo homem....pressupõe, para os existencistas, que Jesus é dispensável, já que a consciência é sobre algo e se os humanos têm consciência é porque já conhecem esse algo...só se tem consciência sobre algo que já existe, ou seja, antes da consciência, é o Nada.
Vamos em frente.
Muitos e muitos séculos depois vem o nosso poeta Manoel de Barros e escreve( no Livro das Ignorãnças(poesia completa(livre na internet, pg 301):
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer
nascimentos-
O verbo tem que pegar delírio.
Daí remeto-me à tese de Devari Antônio Fiorotti(UNB, Instituto de Letras, 2006: A palavra encena: uma busca do entendimento da linguagem poética a partir de Manoel de Barros).
O autor supõe que , para a Bíblia, o logos é anterior a Deus, e Deus é criado pelo Logos. Depois nos envia a Goethe e e demonstra como o supremo poder dado ao logos espanta Goethe(como já dissemos)...Fiorotti também relembra a frase de Valéry: "uma palavra é um abismo sem fim"...
Qual seria o descomeço de Manoel? O nada de Sartre? O Ser de Heidegger? O mundo antes do paraíso?
Para Manoel, só depois veio do delírio do verbo. Será que Jesus não foi aquele que fez o verbo delirar? As crianças deliram com as palavras e por isso são pequenos Jesus? Jesus não andava sobre as ondas, transformava a água em vinho, assim como as crianças escutam a cor dos passarinhos?
Então, para Manoel, a criança muda a função de um verbo, e ele(não ela) delira, porque a criança não delira, a criança é o Deus criado pelo verbo.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos, diz Manoel. Ora, Deus não é o que faz nascimentos? Então, relembrando Vicente Huidobro, o poeta é um pequeno Deus? Deus foi o primeiro poeta?
Se pensam que vou chegar a alguma conclusão, estão enganados. Só quero lançar dúvidas sobre dúvidas.
No começo era o verbo? Era o logos?
No descomeço era tudo?
No começo do descomeço era o Nada? Deus era o Nada?
O verbo criou Deus? Jesus era o verbo, e mais nada?
Manoel de Barros era Jesus?
Você estava inspirado... Muito bom. Quem sabe o descomeço é um (re)começo... pelo seu avesso?
ResponderExcluirPS: Depois do 60 posso delirar, pois já voltei a ser criança.