Ler Shakespeare, quantas vezes quisermos, será sempre uma aventura renovada. Isso porque há nele muitas histórias reunidas em uma supostamente única. A primeira poderá ser a de uma história policial, tipo suspense, a segunda poderá ser uma história de romance, a terceira uma história dramática, e assim sucessivamente. Mas o que eu mais gosto mesmo é de buscar o núcleo, o fundamento principal da trama shakespeareana. É claro, aquilo que eu penso que seja o núcleo, porque se outra pessoa o fizer achará outra coisa.. Exemplifico. Em Hamlet, acho que o núcleo do núcleo é a execração pública dos vassalos, de todos os que babam no rei. Hamlet, em sua loucura sã(como dizia Fernando Pessoa: sem a loucura, o que seria o homem, mais do que a besta sadia, cadáver adiado que procria) odeia todos os covardes e principalmente os covardes que se ajoelham aos poderosos. Isso foi tão forte para mim, na leitura de Hamlet, e é ainda, que esta representação mudou minha vida. Ele não tem dó de todos os que se humilham e se tornam falsos somente para viver na servidão ao rei, ou aos reis e ae seus senhores. Parece que Hamlet considera isso a baixesa humana absoluta. Fica bem claro na forma como o príncipe da Dinamarca trata seus supostos "amigos" Rosencrantz e Guildenstern(aliás há vários diferentes exemplos de vassalos, cada um com sua especialidade de vassalagem aos quais Hamlet desmistifica um a um). Retiro da peça a maravilhosa cena em que Rosencrantz e Guildenstern abordam Hamlet após esse haver matado por engano Polônio(outro digno representante da vassalagem real) e escondido o corpo:
Hamlet- Já está em lugar seguro
Rosencrantz e Guildenstern-(fora de Cena). Hamlet! Príncipe Hamlet!
Hamlet- Mas que barulho é este? Quem está chamando Hamlet?Oh! Estão chegando.(Entram Rosencrantz e Guildenstern.)
-Rosencrantz- Que fizestes meu senhor, com o cadáver?
-Hamlet- Entregue ao pó, do qual é parente.
-Rosencrantz- Dizei-me onde está para de lá o tirarmos,a fim de conduzí-lo à capela.
-Hamlet-Não acrediteis.
Rosencrantz- Acreditar em quê?
Hamlet- Que eu possa seguir vosso conselho e não o meu. Além disso, uma esponja fazer-me perguntas! Que resposta deveria dar o filho de um rei?
-Rosencrantz-Achais que eu seja uma esponja, meu senhor?
Hamlet- Sim, senhor; que suga os favores do rei, suas recompensas, suas atribuições. Mas semelhantes cortesãos prestam ao rei o melhor serviço, no fim. Este os guarda, como o macaco as nozes, num canto das bochechas; ali são primeiro introduzidas, para serem engolidas mais tarde e quando necessita o que colhestes, só tem que espremer-vos e, como esponjas que sois, ficareis enxutos novamente.
Rosencrantz- Não estou compreendendo o que dizeis, senhor.
Hamlet- O que causa grande prazer. nos ouvidos do tolo a palavra maligna acaba adormecendo.
Rosencrantz- Senhor, deveis dizer-nos onde está o corpo e ir á presença do rei em nossa companhia.
Hamlet- O corpo está com o rei, porém o rei não está com o corpo. O rei é uma coisa....
Guildenstern-Uma coisa, senhor?
Hamlet-....que nada vale. Levai-me a ele. Esconde-te, raposa, e todos atrás(Saem)
É das esponjas, raposas e nozes comidas pelos macacos de fala Shakespeare em Hamlet, todo o tempo. O corpo está com o rei, porém o rei não está com o corpo suponho referir-se ao verdadeiro rei, o pai de Hamlet(o que está com o corpo, ou seja, já morto) e o rei não está com o corpo refere-se ao rei empossado(falso rei...o que usurpou o poder, Claudio, seu tio)... O rei é uma coisa.....o empossado outro(está subentendido).
Minhas reflexões são ganchos para que todos vocês também tentem se maravilhar com o bardo inglês, um dos reis da literatura....dele sou vassalo...afinal.
Salve Hamlet. Salve Shakespeare.
Caro Ramon, segundo a tese do crítico Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, ou seja, a relação do homem consigo mesmo e sem a intervenção de deus ou deuses. Seu comentário lembra-me também Aldous Huxley, que dizia encontrar numa simples frase de Shakespeare um tratado de filosofia. Nosso poeta e dramaturgo inglês são as verdadeiras portas da percepção.
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