AS MIL LEITURAS DE SHAKESPEARE 2- HAMLET
Muito antes da série Shakespeare Uncovered as questões sobre as várias peças dentro da peça principal em Shakespeare já me emocionavam. Agora revejo o episódio 6 da série, que é sobre Hamlet. É sensacional ver os atores que interpretaram Hamlet em épocas diferentes trocarem ideia sobre o personagem, e, mais ainda, sobre eles mesmos depois de terem vivido Hamlet.
A história de Hamlet é, no sentido mais profundo, a do "luto", a da vivência da morte, e mais além, a reflexão que a perda de um ente querido nos impõe sobre o sentido da vida. Mas no caso específico de nosso príncipe, é um luto muito maior porque ele percebe que só ele está passando a sensação intensa de perda, enquanto todos os outros, inclusive sua mãe, superaram muito rápido a morte do Rei, pai de Hamlet. Isso nos remete, talvez, à experiência única que é a perda de um pai, ou de uma mãe, ou de um filho. Por mais que os outros nos consolem, por mais que alguém sinta a perda, nenhum deles sentirá como filho. A vivência da perda do pai é uma vivência de extrema solidão. Como Shakespeare conseguiu passar tão magistralmente o sofrimento de Hamlet e sua aflição ante o inexorável destino de viver sem o pai?
A explicação é que Shakespeare, à época de escrever a peça, havia perdido tragicamente seu filho de onze anos, que se chamava Hamlet, e a peça foi escrita em homenagem a ele. O luto de Hamlet era o luto de Shakespeare. Mas a história de Hamlet, assim como todas as outras de Shakespeare, nos revela uma surpresa em cada canto(literalmente). Gertrudes e todas as outras mulheres de Shakespeare(que grande livro daria um estudo sobre a personalidade das mulheres de Shakespeare) poderiam ter destino diferente? Havia alguma saída para Gertrudes, num tempo em que as mulheres eram mercadoria de troca , e nada mais, senão desposar Cláudio e com isso garantir a sobrevivência de seu filho Hamlet, aguardar a hora dele subir ao poder? Sob a aparente fraqueza e promiscuidade feminina não estaria uma estratégia de sobrevivência? Hamlet é atormentado pelos dilemas éticos. Podemos indagar se a visão do fantasma não representa uma mensagem inconsciente. Para nós, do século XX( isso é muito discutido no Shakespeare Uncovered), ver fantasmas é algo raro e duvidoso, mas na época de Shakespeare as pessoas acreditavam piamente nos fantasmas, e podemos interpretar literalmente que Hamlet vira um fantasma e não uma representação de seu delírio, embora isso não faça a menor diferença. Hamlet, desde o momento em que soube, ou que confirmou para si que seu tio assassinara seu pai, resolveu se vingar, mas o que o impediu, até o último momento? A ética, ou melhor, seu profundo senso de moral. Isso não era comum naquela época. Matar e morrer por vingança era tão certo quanto comer e permitido quanto dormir quando ter sono. Shakespeare levanta maravilhosamente os problemas éticos na figura de Hamlet. Ele tem dois dilemas básicos: posso matar o meu tio, mesmo ele sendo um traidor e assassino de meu pai; devo continuar vivendo ou devo suicidar-me?. Sobre o segundo dilema, devemos pensar que o suicídio era tido em péssima conta, e que as pessoas que suicidavam não podiam ser enterradas com cerimônias fúnebres nem receber honras ou bênçãos. Isso é demonstrado no enterro de Ofélia(hora em que a dimensão ética é também discutida, pois Ofélia estava sendo enterrada com honras quando todos sabiam que havia se suicidado, portanto havia uma lei para os nobres e outra para os pobres), portanto Hamlet refletia sobre a morte e o morrer durante todo o tempo. Já pensaram como aquilo influenciava os jovens da época? Será que muitos não se suicidaram depois de assistir Hamlet? Pensar em morrer já era por si só um ato subversivo. Hamlet quase mata a mãe, quase mata o Rei, quase mata Laertes, quase mata a si próprio, mas Hamlet é incapaz de matar, Hamlet é a própria consciência em pessoa. Toda a vingança, afinal, se converte em realidade, mas não foi Hamlet quem a proporcionou. Foram todos os culpados pelas tramas e traições. Hamlet, afinal, só queria saber por quê? Shakespeare, segundo os historiadores, não era um autor preocupado em escrever sobre o inconsciente, a profundidade do ser, a alma, ele era muito mais um sujeito que precisava sobreviver e escrevia peças populares para ganhar dinheiro. Então podemos reconhecer a dimensão de tudo o que conseguiu, sendo somente o que pretendia ser um Nelson Rodrigues de sua época. Mais de quatrocentos anos se passaram desde Hamlet, ele continua sendo o drama mais encenado, mais discutido, mais amado de toda a literatura mundial. Há a revelação de cada um de nós, ou um pouco de nós, em cada personagem, pois cada um tem o seu defeito, o seu lado pequeno, malvado, covarde, somente Hamlet é totalmente capaz de ser fiel aos princípios da moralidade. Todos nós queríamos ser Hamlet, mas somos também Cláudio, Polônio e Gertrudes.
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